29 de setembro de 2012

Os Rinocerontes, Massificação e o Autoconhecimento




Uma das peças de teatro que mais me impressionou na vida foi  O Rinoceronte”,  do dramaturgo romeno Eugène Ionesco, escrita em 1958.

Li esse texto quando tinha 15 anos de idade, como parte do programa de Literatura da escola onde estudei.
Chamou-me a atenção que, mesmo na culta Europa, alguém tivesse tido a coragem de escrever uma crítica tão original sobre os padrões da sociedade e os mecanismos existentes de manipulação e massificação sobre as pessoas.

É um texto atualíssimo, psicológico ; aliás, eu diria que vivemos o conteúdo dele em seu ápice, ou seja, estamos nos “anos dourados” dos rinocerontes de Ionesco.
Os diálogos são maravilhosos, fluentes e a peça ainda é capaz de chocar muita gente.

O texto narra uma situação absurda onde, numa cidade qualquer, pessoas começam a se transformar em rinocerontes.

No início, as metamorfoses causam medo e pânico na população, até que, quando muitos e muitos já viraram paquidermes, inclusive autoridades, chefes, padres, políticos, donas de casa e os famosos “homens de bem”, a transformação em um bicho selvagem e grotesco passa a ser vista como algo natural, bonito e até desejado por aqueles que ainda mantinham suas condições humanas.

Menos para um homem, o “desajustado”  Bérenger.

Ele é um sujeito que se recusa a se “acostumar” e tem tremendas  dificuldades em se tornar “um homem de bem” para os padrões vigentes,  isto é:  bebe, veste-se de modo desleixado, é crítico, solitário e é consciente que há em sua alma um enorme incômodo diante da  vida, um grande peso de existir.

Bérenger duvida. Questiona a si mesmo e ao mundo.
Não é um alienado, como os outros.

Inconformado com as coisas às quais todos se conformam, às rotinas, às burocracias, aos modos, à erudição estéril de seus colegas, ao suposto sucesso social das pessoas, Bérenger, sem ter obtido diplomas, é um filósofo natural, causando irritação em seus colegas, até mesmo em seu “declarado” melhor amigo, Jean, o protótipo do bom-moço, sabe-tudo, bem sucedido e cheio de “bons conselhos”, mas afundado em um oceano de hipocrisias.

Bérenger muito se assemelha ao poema de Fernando Pessoa, “Poema em Linha Reta”, no qual todos são vencedores em tudo, mesmo rodeados de mentiras e ele  é  “aquele que enrosca os pés publicamente nos tapetes das etiquetas e que tem sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas, verificando que não tem par nisto tudo neste mundo”.

Na peça de Eugène Ionesco, os ganidos dos animais, a poeira que levantam nas ruas, a destruição  que causam à cidade, a irracionalidade, a selvageria, vão ganhando espaço, sendo vistas como algo interessante, belo e desejável, até o ponto em que Bérenger, sozinho, é o último humano que resta.

Incrível é que todos passam a querer se transformar em um deles!!
Não é algo contagioso, como levar uma mordida de um vampiro ou ser atacado por um morto-vivo, como nas histórias de zoombies.
Aqui, virar rinoceronte é algo contagiante!!
É querer estar numa condição na qual todos já estão.
É entrar na massificação.
Fazer parte da alienação.
É ajustar-se aos modismos, às convenções, aos padrões impostos, mesmo que sejam ridículos, absurdos e contrários aos seus.
É agir, viver e querer o que todo mundo faz, vive e deseja, sem questionar o porquê dessas ações, desejos e escolhas.

Bérenger, o “desajustado”,  é a resistência da condição humana  e  sendo  assim, é o único dos personagens com possibilidades reais de crescimento e de autoconhecimento.

Vivemos esses tempos.
Rinocerontes! 

São muitos e seus ganidos podem ser ouvidos nas ruas, nas igrejas, nas escolas, nas universidades, na TV, nos meios de comunicação, nos comércios, nos tribunais, nos consultórios, na política, nas empresas,  nas  instituições todas!

Cada dia rinocerontes arregimentam novos rinocerontes.
Massificados, caminham para o matadouro, hipnotizados pela  busca de valores, situações, conquistas, status e modos de vida  ditados pelos mestres-rinocerontes.
São pessoas inseguras, sugestionáveis, cujos espíritos fracos nunca estão alertas para perceberem a manipulação que sofrem.

E muitas são as armas e os meios usados nesse mecanismo de massificação e bestificação das pessoas.
Para empunhar essas armas existem as religiões, a família, clubes, escolas, meios de comunicação, política e a sociedade de um modo geral.
São as fábricas de bestas.

A primeira das armas usadas para a esperada transformação é o medo: incutem o medo da solidão, medo de ser ignorado, rejeitado, criticado, discriminado, medo de fracassar, medo de Deus, medo de perder, medo, medo, medo de ficar de fora da manada!!
 
A segunda arma é a falsa liberdade: pregam que o indivíduo tudo pode fazer, que ele "é livre", mas na verdade seus caminhos já estão traçados, caminhos de escravidão e servidão.
Cumprirá o que foi determinado para cumprir, mas sem que ele se dê conta disso.

A terceira é a falsa esperança: apontar fórmulas de sucesso e de felicidade, mentir sobre esperadas mudanças, usando pessoas-marionetes como exemplos a serem seguidos, jogando assim um véu sobre os caminhos para a Verdade Interior e para a necessária evolução espiritual de cada um.

A quarta arma é a culpa.

Num mundo cada vez mais tendencioso ao "politicamente correto", todos querem lavar suas consciências diante dos outros, diante de seu deus e de si mesmo e as instituições atuais são mestras em persuadir da culpa, em punir e também em redimir.

A  quinta é mais sutil: farão de tudo para que o indivíduo se afaste de si mesmo, do seu processo de autoconhecimento, de sua consciência e também do conteúdo de seu inconsciente e que fique longe de tudo o que possa proporcionar a ele esse autoencontro.

Pão e circo, para todos: festas, jogos, prazeres fáceis e descartáveis e qualquer coisa que possa causar euforia coletiva, alienação e distração inúteis.
Bajulação, dogmas, valores  e promessas de sucesso social e pessoal, para os mais ambiciosos!

Porque rinocerontes  precisam, o tempo todo, da aprovação e admiração de seus pares.
Regidos pelo medo e pela insegurança diante de tudo, joguetes nas mãos dos formuladores de opinião e dos falsos senhores da razão e das verdades, preferem qualquer escravidão, mesmo que mascarada de uma suposta segurança e de uma suposta liberdade, a ter que percorrer os corredores ora escuros, ora iluminados, que fazem parte das secretas passagens da própria Alma!

Fracos, não tem coragem para a aventura que é o Autoconhecimento.

Preferem os manuais ridículos de auto-ajuda, nos quais são ensinadas técnicas de auto-adestramento psicológico e social e  receitas baratas de "sucesso"!

Por outro lado, é  impossível controlar e manipular pessoas que estão se buscando.
Essas, nunca virarão rinocerontes, nunca serão escravas, nunca serão controladas.

Pagarão um preço por serem como são, por essa "rebeldia"?

Certamente, mas aí reside todo o segredo e para isso tem que haver discernimento e coragem.
Saber se o que querem, o que fazem, o que desejam, é fruto de manipulações, modismos, exigências sociais, ambições derivadas de processos massificadores ou se tudo isso partiu verdadeiramente de sua Alma, de sua essência indestrutível, daquilo que não é passageiro, e que constitui seu Espírito e seu caminho pessoal.
E ter coragem para seguir esse Caminho.

Essas pessoas são como Bérenger, resistentes, indomáveis, buscadores, questionadores: pessoas que buscam conhecer tanto suas virtudes como seus defeitos e que não se deixam impressionar com fórmulas e modelos externos, vindos de onde vier, de sucesso, felicidade e realização de vida.

São humanas, demasiadamente humanas para entrarem na manada!

2 comentários:

  1. pois bem, um texto extremamente interessante e realista. maria-vai-com-as-outras é o que estamos nos transformando, e sem rumo, procuramos um mestres que nos guie a um curral onde todos são a mesma coisa. libertos em nossa gaiola. vazios e sem ornamentação. pobres de espirito. pobre de nos que somos o que somos por medo de sermos mais. abdicamos de nos, mas para não ser diferentes. rejeitamos a solidão e preferimos a companhia dos que são mais infelizes que nos. todos em direção os curral.

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