1 de julho de 2010

Dogville e a Miséria Espiritual

                                
                              
Dogville, de 2003, do diretor dinamarquês Lars Von Trier, é um dos filmes mais interessantes e incríveis que já vi e revi até hoje, mil vezes, um de meus preferidos, de profundidade psicológica, social, moral e espiritual espantosas e que toca na questão do perdão, da inveja, da justiça, da exploração do outro, do orgulho, da perigosa ética pessoal, da compaixão sem medidas e da prepotência.

Dogville é um lugarejo fictício dos EUA, ambientado na época da Grande Depressão Econômica, na década de 30, onde vivem algumas pessoas em situação de extrema pobreza, isoladas do mundo e aparentemente satisfeitas com suas vidinhas.
O espaço cenográfico do filme é apenas um tablado escuro e simples de teatro, marcado no chão com giz, que delimita a ação dos personagens: o cenário é quase inexistente e nem há divisórias nas cenas, além de somente alguns objetos aparecerem no decorrer do filme inteiro.
O que parece ser um filme chato ou excêntrico em seu início (e excêntrico é mesmo!!) surpreende a cada passo o expectador, porque o que virá a seguir é uma história perturbadora e incomum, além dos diálogos e do elenco fantásticos.

Há um narrador onipresente que nos insere na trama, na verdade nos atos do filme-teatro e que nos deixa a par do que se passa e do que virá a ocorrer em Dogville.

Enfim, um filme de Mestre. Para ser odiado ou idolatrado.

Das poucas pessoas que vivem lá, há um pseudo-filósofo, Thomas Edison Jr, um jovem que sonha em ser escritor, mas que nunca chegou a escrever algo, porque está sempre perdido em suas constantes divagações, estéreis e sempre inúteis.

Existe também uma família que vive de raspar copos usados e surrados para serem vendidos fora de Dogville, como se fossem novos.
Nessa mesma família há um pretenso engenheiro, outro pseudo-intelectual, de inteligência medíocre e que vive às voltas com tentativas infrutíferas de vencer uma partida de xadrez.
Há ainda um cego solitário (numa interpretação magistral do ator Ben Gazzara), que nega veementemente sua cegueira para todos e uma mulher que “toca” o órgão da igreja, mas não o faz emitir sons, para não “gastá-lo” e assim “poupá-lo” quando algum padre vier assumir a paróquia!!

A mediocridade e a mentira estabilizada de Dogville são interrompidas com a chegada de Grace, uma jovem fugitiva de gangsters e que pede abrigo no lugarejo, ela personagem central do filme (interpretada com perfeição pela atriz Nicole Kidman).

A permanência e a acolhida de Grace pelos habitantes serão feitas mediante uma condição: que Grace prove que é útil ao local, embora os habitantes declarem que não precisam de absolutamente nada além do que possuem e também de que não necessitam da ajuda de ninguém.

É a partir daí que toda a trama se desenvolve.

Grace (o nome não é à toa, significa graça, benção divina) começa então a dar auxílio às pessoas de Dogville, que ainda assim continuam dizendo que de nada necessitam: ensina xadrez para o limitado rapaz; faz com que a mulher toque de verdade o órgão da igreja; conforta o médico hipocondríaco, pai de Thomas, mostrando-lhe que não está doente e nem à beira da morte; ajuda nas tarefas domésticas na casa de uma mãe com uma filha deficiente; limpa casas, educa crianças, colhe maçãs; é conselheira, amiga e companhia agradável para o perturbado e superficial Thomas Edison Jr e faz com que o cego assuma sua cegueira para a cidade, entre outros atos de auxílio, socorro, compreensão, amparo, amizade e benevolência.

Com seu olhar cheio de boas ideologias, acredita que aquelas pessoas todas são dignas de ajuda, de atenção e que merecem uma chance na vida: que só precisavam de alguém que olhasse por elas, que as amparasse no dia a dia e acreditasse nelas e em seus potenciais.

Grace chega a ser grata por ser tão bem acolhida e vê beleza nas coisas, no lugar e nas pessoas daquele miserável lugarejo.

Esse é seu grande erro.

Na verdade, ao longo da trama, com suas atitudes caridosas, Grace vai desmoronando o mito de que todas aquelas pessoas eram auto-suficientes e felizes em suas condições e que suas vidas eram pautadas em coisas sólidas e verdadeiras.

Grace, sem querer, vai mostrando como são limitadas e que poderiam sim necessitar de ajuda: apenas negavam sua ignorância e viviam acomodadas em suas mentiras particulares e coletivas.
Por ter vivências completamente diferentes daquelas dos aparentemente humildes e injustiçados habitantes de Dogville; pelo seu padrão cultural e social oposto aos deles e principalmente pela sua ideologia de que o conhecimento, o amor, o auxílio, a companhia e a compreensão devem ser dados a todos, indistintamente, é que Grace viverá no decorrer da história o maior de todos os pesadelos que um ser humano poderia viver.

O inferno físico, moral e psicológico no qual se transformará a vida de Grace é fruto de sua desmedida compaixão e de sua intromissão nas trevas de cada habitante do local.

Porque a grande pobreza de Dogville não é a material; ela apenas coincide, casa e sincroniza com a gigantesca miséria espiritual e psicológica de cada um de seus habitantes.
As pessoas que moram lá vão deixando transparecer a imensa inveja que sentem de Grace, inveja essa que se transformará em ódio ao longo da trama.

O filme termina de modo surpreendente e muito chocante, terrível mesmo, com tintas de Nietzsche principalmente e nos inquieta demais, mexendo com os conceitos que aprendemos ao longo da vida.
Os diálogos finais nos deixam desconcertados, com um certo incômodo e isso é feito propositalmente.
Toda a falta de cenário, nos últimos atos, fala através de luzes e sombras, num golpe de genialidade do diretor e da equipe técnica.

E no meio disso tudo, o único personagem que parece estar ao lado de Grace é Thomas Edison Jr.
Na verdade, ele talvez seja o mais esperto e o único verdadeiro hipócrita de todos, porque o benefício que Grace traz a ele não é de ordem material.
Ele finge estar indignado com a situação cruel de Grace e afirma que encontrará uma solução para a jovem e para o fim de seu suplício.
Para ele, ela é a amiga e a inspiradora de suas inúteis teorias filosóficas.
Se os outros habitantes de Dogville podem ser comparados com ratos, Thomas seria uma espécie de verme, de parasita, destruindo Grace por dentro, parasitando e corroendo suas crenças e esperanças.

Mas o curioso é que Grace aceita em silêncio seu martírio.
Por quê?

Porque crê firmemente que faz a coisa certa.
Como Cristo, que pede ao Pai na Cruz: “Perdoai-os porque eles não sabem o que fazem”, Grace acredita também que eles não sabem o que fazem....porque são pobres, são simples, são uns coitados, uns humildes desventurados, desprezados pelo mundo e que não tiveram oportunidade de crescer como seres humanos, oportunidade essa que ela, Grace, teve na vida.
É uma forma de má interpretação das palavras do Mestre.

A ideologia de Grace é a causa de toda sua tragédia, misturada a uma certa prepotência e ao Complexo de Salvadora, talvez.

Quantos de nós temos nossas Dogville na vida; quantas vezes estendemos a mão para as pessoas erradas, porque julgamos que são dignas de ajuda, porque tiveram uma vida difícil, porque foram injustiçadas pela sociedade, pelo mundo, por Deus ou pelo Diabo?
Quantas vezes abrimos nosso coração, nossa mente e também nossos bolsos para amparar pessoas manipuladoras e choramingas?
Quantas vezes enxergamos beleza, autenticidade, inteligência, irreverência, profundidade, graça e espontaneidade onde nunca existiram, a não ser em nossos olhos ingênuos; quantas vezes não vimos isso em pessoas que no máximo são porcos disfarçados de gente?
Quantas vezes aturamos um discurso retrógrado e hipócrita, de que a pobreza e a falta de instrução são sinônimos de bom caráter e de santidade?

Que aqueles que nasceram em berço de ouro deverão ser punidos para o resto de suas vidas; os que estudaram deverão ser merecedores da masmorra e que o conhecimento, o amor e a amizade devem ser dados a todos, mesmo que sejam ratos se fingindo de humanos?

A atitude arrogante de Grace é, na verdade, a contramão do Ocultismo.

Como dizia o Mestre Eliphas Levi: "Podem publicar, divulgar e até revelar alguns segredos da Arte do Ocultismo, porque poucos, muito poucos mesmo compreenderão o mínimo necessário."

E certamente nem estarão dispostos a seguir em frente!!
O conhecimento de certas coisas não pode ser oferecido a qualquer um.

É preciso uma luz interior para iluminar as ferramentas que serão usadas para se atingir a Luz Maior e pouquíssima gente sobre essa Terra possui essa luzinha suficiente.
Já podem se sentir felizes aqueles que possuem dentro de si uma chama pequena como a de um fósforo aceso, porque nos tempos atuais, de materialismo e escuridão espiritual isso já é uma grande coisa.

Outra lição que se pode tirar do filme é a de que também não se pode e nem se deve forçar alguém destituído dessa mínima luz que veja o que tem que ser visto, nem tentar avivar chamas internas que ainda estão muito adormecidas.
Muita gente, como os habitantes de Dogville, sente-se incomodada quando percebe que ainda deve aprender muito nessa vida e isso fere o orgulho feroz que mora em suas almas pequenas.
É necessária muita humildade, coisa rara nesse mundo de competições e de egocentrismo, para que a evolução de cada um se faça de maneira plena e edificante.

Porque Grace, através de um suposto bem, pratica uma grande injustiça, um grande mal, contra si e contra os habitantes de Dogville.
Através da benevolência direcionada àqueles que não a mereciam, ela é humilhada pelo ódio e pela inveja e desperta o pior que há dentro daqueles seres, que até então se julgavam felizes e satisfeitos com suas vidas.

É a prepotência da caridade de Grace.
Ela possuía esse direito? De querer, através de sua ética pessoal, "iluminar" pessoas que não pediram isso?
De esperar gratidão, compreensão ou ética de pessoas incapazes dessas atitudes?

Alguns dirão que o bem deve ser feito a qualquer um.
Tenho dúvidas quanto a isso.
Primeiro porque questiono o que vem a ser “um bem”.
E quando somos prejudicados pelo "bem" que praticamos, que justiça há nesse ato?
Qual o valor moral acima de todas as cabeças?
Sacrificar-se por pessoas que não valem à pena é ato de heroísmo ou de falta de amor a si mesmo?
E como saber, por outro lado, quem é digno de ajuda, de compreensão e de receber conhecimento, se esse merecimento não está estampado na testa das pessoas?
Como responder a essas questões?

Embora extraído e transferido de seu contexto original, não consegui encontrar palavras melhores para nos indicar isso do que aquelas palavras ditas por Jesus de Nazareth, no célebre Sermão da Montanha:

“Não deis aos cães o que é santo, nem lanceis aos porcos as vossas pérolas, para não acontecer que as pisoteiem e, voltando-se, vos despedacem.”
“Assim, toda árvore boa produz bons frutos; porém a árvore má produz frutos maus.....
....Portanto, pelo seus frutos, os conhecereis.....”

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